A HISTÓRIA DA MULHER QUE POSOU PARA O BUSTO DA "República"
mulher invulgar que deu o rosto à República
mulher invulgar que deu o rosto à República
Em
1910, uma jovem de 16 anos serviu de modelo para o Rosto da República
ao escultor Simões de Almeida, sempre sob o olhar atento da mãe.
Chamava-se Hilda Puga e a sua vida foi plena
de aventuras. O Expresso conta-lhe a história de uma mulher invulgar,
que sobreviveu a dois cancros, esteve casada dois meses, foi rica mas
teve tornar-se costureira para sobreviver e morreu no dia em que
celebrou 101 anos
FOTOS CORTESIA DA FAMÍLIA PUGA
Até
1970, Hilda Puga andava nos bolsos de todos os portugueses. Era dela o
rosto das moedas de 5 escudos e de 50 centavos, fruto do serviço
patriótico que prestou muitos anos antes,
quando a República foi instaurada, em 1910. Ela, que "até era
profundamente monárquica, muito católica e reacionária", recorda o neto,
Nuno Maia, 50 anos, "aceitou o pedido do escultor Simões de Almeida por
amor ao país." Hilda tinha 16 anos, e trabalhava
numa camisaria na R. Augusta, na Baixa de Lisboa. Estava a fazer uma
entrega quando se cruzou com o escultor, que lhe achou graça e a
convidou para ser sua modelo.
Como
Hilda era menor de idade, Simões de Almeida teve de pedir autorização à
mãe dela, que lhe impôs duas
condições: a primeira, ela própria teria de estar presente nas sessões -
que duraram duas horas, durante um mês; e a segunda era que a filha
teria de posar vestida. Foi esta, aliás, a razão que levou Hilda Puga a
só falar abertamente deste episódio depois
dos 90 anos... É que o busto de Simões de Almeida mostra uma mulher de
amplo decote, e Hilda jura "que só tinha desabotoado um botão da
camisa..."
Este
poderia ser um episódio de relevo na vida de muita gente, mas para
Hilda foi apenas um numa vida cheia
de aventuras e reviravoltas. Nas primeiras está, por exemplo, uma
viagem de barco de meses até ao Amazonas. Nas reviravoltas da vida estão
a perda do pai e a passagem de menina rica a costureira.
DE LISBOA PARA BELÉM DO PARÁ
O
pai de Hilda, Tomás Garcia Puga, era um homem abastado, proprietário da
fábrica de tijolos da praça de Touros do Campo Pequeno (Lisboa).
Apaixonou-se pela empregada, com quem viveu
a vida toda e de quem viria a ter cinco filhos – mas o ato de amor
custou-lhe o corte de relações com a família de origem, que nunca
aceitou uma união tida como "inferior". Um revés nos negócios obrigou
Tomás Puga a vender a fábrica. Atraído pelo Eldorado
da borracha no Novo Mundo, em finais do século XIX, ruma a Iquitos, na
Amazónia peruana, onde ergue um armazém geral. A vida corre bem, tanto
que, passados poucos anos, Tomás chama a família toda. Numa longa viagem
de mais de três meses, de "vapor, barco e
piroga", Hilda, a mãe e os quatro irmãos rumam de Lisboa até Belém do
Pará.
Passaram-se
três anos felizes na Amazónia, até que Tomás Puga adoece com beriberi,
uma avitaminose provocada
por deficiência de vitamina B1. O médico dita a sentença: Tomás tem de
regressar a um clima temperado, sob pena de morrer. A família Puga
embarca de novo, de regresso a Lisboa – mas o chefe de família não
aguenta a viagem e morre a bordo, ao largo de Cabo
Verde. O funeral é feito no mar. À chegada à Lisboa, sem o sustento da
família, esperava-os a miséria.
Foi
a educação dos anos de desafogo financeiro, que proporcionou aulas de
piano, costura e bordado, que permitiu à mãe e às irmãs Puga
sobreviverem. Hilda dedicou-se à costura – nunca
deixou de costurar, a vida toda. "Fê-lo diariamente até aos 96 anos",
conta o neto - "lençóis, toalhas, fardas de empregada, crochet", e
ocupava-se muito em leituras. Mas a vida ainda lhe reservaria outros
desafios.
Ainda antes dos 30 anos, Hilda teve um primeiro cancro de mama, que o pai do médico Gentil Martins retirou. Na mesma altura, casou-se, com um jornalista – foi a última das irmãs a fazê-lo. Mas também aqui não teve sorte, permanecendo casada escassos dois meses. Arremessou um candeeiro à cabeça do marido, e, apesar de muito católica, pediu o divórcio em 1932 (ainda antes da Concordata ser assinada em Portugal), somando para si mais um estigma social: o de mulher divorciada.
Ainda antes dos 30 anos, Hilda teve um primeiro cancro de mama, que o pai do médico Gentil Martins retirou. Na mesma altura, casou-se, com um jornalista – foi a última das irmãs a fazê-lo. Mas também aqui não teve sorte, permanecendo casada escassos dois meses. Arremessou um candeeiro à cabeça do marido, e, apesar de muito católica, pediu o divórcio em 1932 (ainda antes da Concordata ser assinada em Portugal), somando para si mais um estigma social: o de mulher divorciada.
Não
tornou a casar-se, e nunca teve filhos – mas criou como tal uma
sobrinha, Emília, que lhe chamaria sempre
"mamã". Aos 60 anos, Hilda teve um cancro na outra mama, e mais tarde,
retirou outro tumor, na barriga. Cegou ainda de um olho, o esquerdo. A
tudo isto sobreviveu. Com a costura, sustentava a mãe e filha "adotiva".
Até que esta se casou, em 1957. Após 3 anos
de vida em comum com Emília e o marido, optou por ir para um lar, aos
77 anos. Estava muito habituada ao seu espaço, e custava-lhe ter de
prescindir da sua liberdade.
Onze
anos mais tarde, sofreu o maior de todos os golpes: Emília morria, de
cancro de mama. Hilda remeteu-se à clausura total, no lar, não saindo de
lá durante uma década. Foi preciso
nascer o primeiro sobrinho neto para tornar a passar o Natal em
família. Em 1991, parte uma perna e cai à cama. Nessa altura, o seu
maior problema era "não poder costurar". Dois anos depois, falece, aos
101 anos. Morria o rosto da República, cuja implantação
se assinala esta quarta-feira.
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