sexta-feira, fevereiro 23, 2018

Pérola de Cultura: Valter Hugo Mãe sobre os professores

Pérola de Cultura: Valter Hugo Mãe sobre os professores: Os professores    "Achei por muito tempo que ia ser professor. Tinha pensado em livros a vida inteira, era-me imperiosa a dedic...





Os
professores
 
 "Achei por muito tempo que ia ser professor. Tinha pensado em livros a vida
inteira, era-me imperiosa a dedicação a aprender e não guardava dúvidas acerca
da importância de ensinar. Lembrava-me de alguns professores como se fossem
família ou amores proibidos. Tive uma professora tão bonita e simpática que me
serviu de padrão de felicidade absoluta ao menos entre os meus treze e os quinze
anos de idade. A escola, como mundo completo, podia ser esse lugar
perfeito

... Ver mais de liberdade intelectual, de liberdade superior, onde
cada indivíduo se vota a encontrar o seu mais genuíno, honesto, caminho. Os
professores são quem ainda pode, por delicado e precioso ofício, tornar-se o
caminho das pedras na porcaria de mundo em que o mundo se tem vindo a tornar.
Nunca tive exatamente de ensinar ninguém. Orientei uns cursos breves, a muito
custo, e tento explicar umas clarividências ao cão que tenho há umas semanas.
Sinto-me sempre mais afetivo do que efetivo na passagem do testemunho. Quero
muito que o Freud, o meu cão, entenda que estabeleço regras para que tenhamos
uma vida melhor, mas não suporto a tristeza dele quando lhe ralho ou o fecho
meia hora na marquise. Sei perfeitamente que não tenho pedagogia, não estudei
didática, não sou senão um tipo intuitivo e atabalhoado. Mas sei, e disso não
tenho dúvida, que há quem saiba transmitir conhecimentos e que transmitir
conhecimentos é como criar de novo aquele que os recebe. Os alunos nascem diante
dos professores, uma e outra vez. Surgem de dentro de si mesmos a partir do
entusiasmo e das palavras dos professores que os transformam em melhores
versões. Quantas vezes me senti outro depois de uma aula brilhante. Punha-me a
caminho de casa como se tivesse crescido um palmo inteiro durante cinquenta
minutos. Como se fosse muito mais gente. Cheio de um orgulho comovido por haver
tantos assuntos incríveis para se discutir e por merecer que alguém os
discutisse comigo. Houve um dia, numa aula de história do sétimo ano, em que
falámos das estátuas da Roma antiga. Respondi à professora, uma gorduchinha toda
contente e que me deixava contente também, que eram os olhos que induziam a
sensação de vida às figuras de pedra. A senhora regozijou. Disse que eu estava
muito certo. Iluminei-me todo, não por ter sido o mais rápido a descortinar
aquela solução, mas porque tínhamos visto imagens das estátuas mais
deslumbrantes do mundo e eu estava esmagado de beleza. Quando me elogiou a
resposta, a minha professora contente apenas me premiou a maravilha que era, na
verdade, a capacidade de induzir maravilha que ela própria tinha. Estávamos,
naquela sala de aula, ao menos nós os dois, felizes. Profundamente felizes.
Talvez estas coisas só tenham uma importância nostálgica do tempo da meninice,
mas é verdade que quando estive em Florença me doíam os olhos diante das
estátuas que vira em reproduções no sétimo ano da escola. E o meu coração
galopava como se estivesse a cumprir uma sedução antiga, um amor que
começara muito antigamente, se não inteiramente criado por uma professora,
sem dúvida que potenciado e acarinhado por uma professora. Todo o amor que nos
oferecem ou potenciam é a mais preciosa dádiva possível. Dá -me isto agora
porque me ando a convencer de que temos um governo que odeia o seu próprio povo.
E porque me parece que perseguir e tomar os

professores como má gente é
destruir a nossa própria casa. Os professores são extensões óbvias dos pais, dos
encarregados pela educação de algum miúdo, e massacrá-los é como pedir que não
sejam capazes de cuidar da maravilha que é a meninice dos nossos miúdos. É como
pedir que abdiquem de melhorar os nossos miúdos, que é pior do que nos
arrancarem telhas da casa, é pior do que perder a casa, é pior do que comer
apenas sopa todos os dias. Estragar os nossos miúdos é o fim do mundo. Estragar
os professores, e as escolas, que são fundamentais para melhorarem os nossos
miúdos, é o fim do mundo. Nas escolas reside a esperança toda de que, um dia, o
mundo seja um condomínio de gente bem formada, apaziguada com a sua condição
mortal mas esforçada para se transcender no alcance da felicidade. E a
felicidade, disso já sabemos todos, não é individual. É obrigatoriamente uma
conquista para um coletivo. Porque sozinhos por natureza andam os destituídos de
afeto. As escolas não podem ser transformadas em lugares de guerra. Os
professores não podem ser reduzidos a burocratas e não são elásticos. Não é
indiferente ensinar vinte ou trinta pessoas ao mesmo tempo. Os alunos não
podem abdicar da maravilha nem do entusiasmo do conhecimento. E um país que
forma os seus cidadãos e depois os exporta sem piedade e por qualquer preço
é um país que enlouqueceu. Um país que não se ocupa com a delicada tarefa de
educar, não serve para nada. Está a suicidar-se. Odeia e odeia-se."
Texto
de Valter Hugo Mãe

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