Escrito por Clara Ferreira Alves sobre Mario Soares - no
Expresso Sua Alteza Real, D. Mário Soares.
04-01-2016
Tudo o que aqui relato é verdade. Se quiserem,
podem processar-me
Eis parte do enigma. Mário Soares, num dos
momentos de lucidez que ainda vai tendo,
veio chamar a atenção do Governo, na última semana, para a voz da rua.
A lucidez, uma das suas maiores qualidades
durante uma longa carreira politica. A
lucidez que lhe permitiu escapar à PIDE e passar um bom par de anos, num exílio dourado, em hotéis de luxo de
Paris.
A lucidez que lhe permitiu conduzir da forma
"brilhante" que se viu o processo
de descolonização.
A lucidez que lhe permitiu conseguir que os
Estados Unidos financiassem o PS durante
os primeiros anos da Democracia.
A lucidez que o fez meter o socialismo na gaveta
durante a sua experiência governativa.
A lucidez que lhe permitiu tratar da forma
despudorada amigos como Jaime Serra,
Salgado Zenha, Manuel Alegre e tantos outros.
A lucidez que lhe permitiu governar sem ler os
"dossiers".
A lucidez que lhe permitiu não voltar a ser
primeiro-ministro depois de tão
fantástico desempenho no cargo.
A lucidez que lhe permitiu pôr-se a jeito para
ser agredido na Marinha Grande e, dessa
forma, vitimizar-se aos olhos da opinião pública e vencer as eleições presidenciais.
A lucidez que lhe permitiu, após a vitória
nessas eleições, fundar um grupo
empresarial, a Emaudio, com "testas de ferro" no comando e um conjunto de negócios obscuros que envolveram grandes
magnatas internacionais.
A lucidez que lhe permitiu utilizar a Emaudio
para financiar a sua segunda campanha
presidencial.
A lucidez que lhe permitiu nomear para
Governador de Macau Carlos Melancia, um
dos homens da Emaudio.
A lucidez que lhe permitiu passar incólume ao
caso Emaudio e ao caso Aeroporto de Macau
e, ao mesmo tempo, dar os primeiros passos para uma Fundação na sua fase pós-presidencial.
A lucidez que lhe permitiu ler o livro de Rui
Mateus, "Contos Proibidos", que
contava tudo sobre a Emaudio, e ter a sorte de esse mesmo livro, depois de esgotado, jamais voltar a ser
publicado.
A lucidez que lhe permitiu passar incólume as
"ligações perigosas" com Angola,
ligações essas que quase lhe roubaram o filho no célebre acidente de avião na Jamba (avião esse transportando
de diamantes, no dizer do então Ministro
da Comunicação Social de Angola).
A lucidez que lhe permitiu, durante a sua
passagem por Belém, visitar 57 países
("record" absoluto para a Espanha - 24 vezes - e França - 21), num total equivalente a 22 voltas ao mundo (mais
de 992 mil quilómetros).
A lucidez que lhe permitiu visitar as
Seychelles, esse território de grande
importância estratégica para Portugal, aproveitando para dar uma voltinha de tartaruga.
A lucidez que lhe permitiu, no final destas
viagens, levar para a Casa-Museu João
Soares uma grande parte dos valiosos presentes oferecidos oficialmente ao Presidente da Republica Portuguesa.
A lucidez que lhe permitiu guardar esses
presentes numa caixa-forte blindada
daquela Casa, em vez de os guardar no Museu da Presidência da Republica.
A lucidez que lhe permite, ainda hoje, ter 24
horas por dia de vigilância paga pelo
Estado nas suas casas de Nafarros, Vau e Campo Grande.
A lucidez que lhe permitiu, abandonada a
Presidência da Republica, constituir a
Fundação Mário Soares. Uma fundação de Direito privado, que, vivendo à custa de subsídios do Estado, tem
apenas como única função visível ser
depósito de documentos valiosos de Mário Soares. Os mesmos que, se são valiosos, deviam estar na Torre do
Tombo.
A lucidez que lhe permitiu construir o
edifício-sede da Fundação violando o PDM
de Lisboa, segundo um relatório do IGAT, que decretou a nulidade da licença de obras.
A lucidez que lhe permitiu conseguir que o
processo das velhas construções que ali
existiam e que se encontrava no Arquivo Municipal fosse requisitado pelo filho e que acabasse por
desaparecer convenientemente num incêndio
dos Paços do Concelho.
A lucidez que lhe permitiu receber do Estado, ao
longo dos últimos anos, donativos e
subsídios superiores a um milhão de contos.
A lucidez que lhe permitiu receber, entre os
vários subsídios, um de quinhentos mil
contos, do Governo Guterres, para a criação de um auditório, uma biblioteca e um arquivo num edifico
cedido pela Câmara de Lisboa.
A lucidez que lhe permitiu receber, entre 1995 e
2005, uma subvenção anual da Câmara
Municipal de Lisboa, na qual o seu filho era Vereador e Presidente.
A lucidez que lhe permitiu que o Estado lhe
arrendasse e lhe pagasse um gabinete, a
que tinha direito como ex-presidente da República, na... Fundação Mário Soares.
A lucidez que lhe permite que, ainda hoje, a
Fundação Mário Soares receba quase 4 mil
euros mensais da Câmara Municipal de Leiria.
A lucidez que lhe permitiu fazer obras no
Colégio Moderno, propriedade da família,
sem licença municipal, numa altura em que o Presidente era... João Soares.
A lucidez que lhe permitiu silenciar, através de
pressões sobre o director do
"Público", José Manuel Fernandes, a investigação jornalística que José António Cerejo começara a
publicar sobre o tema.
A lucidez que lhe permitiu candidatar-se a
Presidente do Parlamento Europeu e chamar
dona de casa, durante a campanha, à vencedora Nicole Fontaine.
A lucidez que lhe permitiu considerar Jose
Sócrates "o pior do guterrismo"
e ignorar hoje em dia tal frase como se nada fosse.
A lucidez que lhe permitiu passar por cima de um
amigo, Manuel Alegre, para concorrer às
eleições presidenciais mais uma vez.
A lucidez que lhe permitiu, então, fazer mais um
frete ao Partido Socialista.
A lucidez que lhe permitiu ler os artigos
"O Polvo" de Joaquim Vieira na
"Grande Reportagem", baseados no livro de Rui Mateus, e assistir,
logo a seguir, ao despedimento do jornalista e
ao fim da revista.
A lucidez que lhe permitiu passar incólume
depois de apelar ao voto no filho, em
pleno dia de eleições, nas últimas Autárquicas.
No final de uma vida de lucidez, o que resta a
Mário Soares? Resta um punhado de
momentos em que a lucidez vem e vai. Vem e vai. Vem e vai.
Vai.... e não volta mais.
Clara
Ferreira Alves
Recebi via email de J. C.
Figueiral