"O meu livro é um mapa da corrupção no Vaticano. Todo o dinheiro
recolhido fica para os cardeais, em vez de ir para os pobres"
09.05.2016
às 9h47
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Entrevista a Emiliano Fittipaldi, o jornalista que
passou um ano a investigar a gestão das finanças das instituições que gerem os
bens da Igreja Católica. A investigação resultou no livro Avareza, e a fuga de
informação que relata já mereceu o nome de Vatileaks
Jornalista
O dinheiro
do Vaticano entra sobretudo pela mão dos fiéis, que esperam vê-lo aplicado em
obras de caridade. Mas, afinal, está investido em ações como as da petrolífera
Exxon, e bens imobiliários. Depois de receber uma lista de propriedades da
Igreja em Londres, Paris e Roma, no valor de 4 mil milhões de euros, o
jornalista da revista italiana L'Espresso passou um ano a investigar a gestão
das finanças das instituições que gerem os bens da Igreja Católica. Fittipaldi
descobriu que as esmolas são transformadas em fundos e que as beatificações são
verdadeiras máquinas de fazer dinheiro. Chegou a dizer-se que a fuga de
informação teria vindo de elementos próximos de Francisco, mas o Papa também já
criticou publicamente o livro. Avareza é agora lançado em Portugal, pela
editora Saída de Emergência, numa altura em que o autor, de 41 anos, enfrenta
um processo, acusado do crime de “subtração e divulgação de notícias e documentos
reservados”, previsto na lei do Estado do Vaticano. Se perder, poderá ser
condenado a um máximo de 8 anos de prisão. Por isso, confessa-se “cansado”.
Pela reação negativa de Francisco, “surpreendido”. As revelações, e fuga de
informação inscrita em documentos sigilosos, já mereceram o nome de Vatileaks.
Quais foram
as descobertas mais chocantes desta investigação jornalística?
Em 2012, as
esmolas recolhidas para apoiar os pobres somaram 53,2 milhões, mas só 11
milhões foram para ajudar os mais desfavorecidos. A Cúria romana ficou com 35,7
milhões. Há cardeais a viverem em luxo. No meu livro digo o nome e apelido de
cada um. Descobri que há cardeais a viver em Roma em apartamentos de 400 metros
quadrados. E não usam esse espaço nem para pobres nem para refugiados.
Como é que
usam o dinheiro das esmolas?
Descobri que
Tarcisio Bertone [ex-secretário de Estado] usou 200 mil euros de um hospital
pediátrico para fazer restauros na sua casa. Um cardeal pedófilo pagava 50 mil
euros por mês à secretária.
De onde
vinha todo esse dinheiro?
Um dos
negócios incríveis que denuncio no meu livro é o das beatificações. O caminho
mais rápido para chegar a santo é pagar a um bom advogado para tratar do
processo. Pela beatificação da espanhola Francisca Ana de las Dolores
cobraram-se 482 693 euros.
Quer dizer
que nos países pobres não pode haver santos?
Não. Em
África ou nas Filipinas não há dinheiro para isso. Mas o Banco do Vaticano
ganhou 100 milhões de euros. Francisco quis fechá-lo e depois mudou de ideias.
Todo o dinheiro devia ir para os pobres. Mas, em dois anos, o fundo do Banco do
Vaticano só entregou 17 mil euros, embora tenha amealhado cem milhões. Daí o
título do meu livro, Avareza.
O Vaticano é
avarento?
O Vaticano
comporta-se como uma offshore. Nem sequer dá toda a informação à polícia sobre
quem tem contas no seu banco. Por vezes, o Vaticano decide como um banco e não
como uma Igreja. Francisco quer mais transparência para o futuro, mas não quer
que se descubra o passado. Quer limpar a Igreja por dentro sem que ninguém
saiba. Mas eu não trabalho para o Vaticano nem para o Papa. Sou jornalista.
Vive num
país que alberga o Estado do Vaticano. Como conseguiu escrever sobre um tema
tão sensível?
Em Itália é
muito difícil escrever sobre isto. Temos o Vaticano dentro do nosso país. E o
Vaticano tem uma relação muito estreita com a televisão, com muito poder sobre
ela. Mas o tema é bom para quem faz jornalismo de investigação, como eu.
Conseguiu
publicar artigos e livros sobre o tema, apesar de tudo.
Sou um
jornalista sortudo: tenho toda a liberdade no meu jornal. Em Itália é muito
difícil escrever sobre corrupção na Igreja Católica. A comunicação social
italiana está em 77º lugar no índice de liberdade de imprensa. O Governo é
muito próximo da Igreja e não diz nada sobre este escândalo. A informação que
publico está a ser revelada pela primeira vez na história.
Ficou
isolado com a publicação do livro?
Os meus
colegas dizem que roubei os documentos, uma rádio católica sugeriu que me
enforcasse. Mas tenho todo o apoio do meu editor. E já muita gente leu o meu
livro. Fico feliz com isso. Porque o que um jornalista mais quer é ser lido.
Comecei há 4 anos a escrever sobre o tema para a minha revista.
Quem lhe
passou a informação queria prejudicar o Papa ou ajudá-lo?
As minhas
fontes são seculares e do Vaticano. Não se conhecem. Algumas gostam do Papa e
outras não. Não sei se querem ajudar ou destruir o Papa. Mas os jornalistas não
têm de perguntar “porquê” às fontes. As motivações da fonte não são um problema
nosso. Nós só temos de fazer o nosso trabalho.
Que leitura
faz do facto de aparecerem estes documentos na altura em que o Papa é
Francisco, visto como moderado e defensor dos mais fracos?
É estranho.
Mas, lendo o
seu livro, parece que é mais uma questão de imagem do que de conteúdo.
A propaganda
do Vaticano é muito forte. Francisco é um comunicador perfeito. Escrevemos que
este Papa mudou tudo em apenas 3 anos no Vaticano. Mas não é verdade. Não é
possível. O Papa é o homem mais poderoso do mundo. O grande escândalo é em
Roma. Todos sabem que a Igreja Católica tem problemas com as finanças.
Por haver
demasiados vícios e demasiado antigos na Igreja?
O Vaticano é
um Estado rico. Mas todo o dinheiro recolhido fica no Vaticano, para os
cardeais, em vez de ir para os pobres. Isso é incrível! É aí que está o
problema. Mas fico feliz por estar a denunciar. Depois do meu livro, Francisco
mudou o sistema para haver mais controlo.
Está
desiludido com Francisco?
Francisco e
o Vaticano estão muito zangados comigo porque destruí essa propaganda. Ele
queria reformar, mas não teve tempo para isso. E agora está sozinho. Tem muitos
inimigos.
O Papa corre
mais perigo de vida por ter querido reformar a Igreja?
Não me
parece. Mas, na Cúria romana, muitos odeiam-no.
Tendo em
conta tudo o que denuncia, pode ser bom sinal, ser odiado pela Cúria?
Para um papa
que quer mudar a Igreja, sim. Mas não sei se será capaz. Espero que ele ganhe
esta batalha, mas não tenho a certeza. O meu livro não é contra a fé, mas
contra a corrupção na Igreja. Os padres devem rezar, não andar em casa dos
políticos. Em Itália, a Igreja tem negócios, incluindo na área da saúde, casas
e palácios. A ingerência da Igreja em Itália é muito forte e Francisco quis
mudar isso.
A
popularidade ajuda-o ou prejudica-o?
Ser tão
popular é muito importante. Pode fazer algumas reformas por ter o povo com ele.
Mas cometeu erros.
Quais?
Quando mudou
os homens próximos de Benedict [Bento XVI, anterior Papa] deu a sua confiança a
Pell [responsável pelas finanças do Vaticano]. Foi um grande erro de Francisco.
Pell trabalha dentro do banco do Vaticano e não quer transparência. Francisco
viveu muitos anos em Buenos Aires. Talvez não soubesse bem o que se passava no
Vaticano.
Como reagiu
àquilo que revelou sobre o Vaticano no seu livro?
A reação
deixou-me muito surpreso. Ele é um rei no Vaticano e eu tenho um problema com a
justiça dele. O Papa está muito zangado com a edição do meu texto. Levou-me a
tribunal. Depois da publicação disse em público, na Praça São Pedro, em Roma,
dirigindo-se à multidão, que o meu livro era mau para a Igreja.
Porquê?
Não percebo
porque é um problema para a reforma que Francisco quer fazer. O meu livro é um
mapa da corrupção no Vaticano! Acho que o livro poderá ajudar no futuro.
Preocupa-o
que os radicais islâmicos usem investigações como esta para denegrir a Igreja
Católica e ganharem terreno?
Nunca me
tinham perguntado isso… Não tenho o poder de mudar o mundo. Não sei se pode
destruir a fé na Igreja. Mas isso não é um problema meu. Sou jornalista. Toda a
informação que divulgo é verdadeira.
Ninguém o
acusa de publicar informações falsas ou erradas?
Não. Nem uma
linha do livro foi desmentida.
Nos
processos que tem contra si, de que o acusam, então?
Acusam-me de
ter revelado informação confidencial. Dizem que os meus documentos são privados
e pessoais. Mas ninguém diz que publiquei mentiras. Se digo a verdade, não devo
ter problemas com a justiça.
Mas está a
ter.
Sim. A
sentença deverá ser conhecida em meados de maio. Mas fiz outro trabalho
jornalístico sobre Bertone e estou com problemas porque um tribunal de Roma diz
que o difamei. Nos próximos tempos, vou passar mais tempo em tribunal do que no
jornal.
Que pena
poderão aplicar-lhe?
Uma lei do
Vaticano de há 3 anos prevê penas para quem publique informações confidenciais
como as que divulgo no livro.
A possível
ilegalidade surge à luz da lei do Vaticano?
O meu crime
é ser jornalista. O Vaticano não tem imprensa livre. Rege-se por leis próprias,
que não são as mesmas das italianas. Mas há um acordo entre Itália e o
Vaticano, e quem cometer um crime no Vaticano pode ter problemas com a lei
italiana.
Que
problemas?
Podem
aplicar-me uma pena de 5 a 8 anos. Mas será difícil porque Itália tem lei de
liberdade de imprensa.
Sendo pouco
provável a condenação judicial, que outras consequências lhe trouxe a
publicação deste livro sobre os escândalos financeiros do Vaticano?
Tentaram
destruir a minha reputação. E a reputação é o mais importante para um
jornalista. Fui ao Vaticano para me defender deste ataque. Eu não ameacei
ninguém. Para o Vaticano eu sou culpado. Mas terão um problema político se me
acusarem.
O seu livro
mudará alguma coisa?
Às vezes
podemos mudar alguma coisa. Denunciei 10% do escândalo económico dentro do
Vaticano. Sei de cardeais que têm milhões de euros no banco do Vaticano. Se
outros quiserem investigar, terão muito sobre o que escrever.
Quer dizer
que não continuará a escrever sobre o tema?
Estou muito
cansado. Fui muito atacado em Itália. Dei entrevistas a jornais dos EUA,
Espanha e Portugal. Mas, em Itália, nem um jornal quis ouvir as minhas
denúncias.
É Católico?
Sou
agnóstico.
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