Meu grande sacana
11/11/2016 -
09:54
Nosso caro
Leonard Cohen: não só sabemos que nos podes ouvir, como desconfiamos que
estejas deitado numa nuvem, rodeada por anjos do sexo feminino, a comer uvas
enquanto te comoves a ouvir atentamente os nossos gemidos de saudade
Passámos um
fim-de-semana juntos em que me fizeste esquecer que eras o meu herói.
Quando acabou fiquei com dois heróis: com o Leonard Cohen das canções e
com o Leonard Cohen em carne e osso.
Embebedámo-nos
com Bloody Marys e, a certa altura, tu reparaste que eu tinha a mania de
desdizer o que tinha acabado de dizer. Eu disse-te que era um tique português.
Primeiro afirma-se um disparate ou uma verdade. Depois continua-se “E, no
entanto…”
“And yet!”,
gritaste, “the two greatest words in any language!” Depois desataste a dar
exemplos. A uma mulher que te amava e queria casar contigo: “I love you… AND
YET… I cannot marry you this year”. Ao barman: “Bem sei que já bebi a
minha conta… AND YET… apetece-me outro Bloody Mary”.
Prometemos
escrever um ao outro. Quando eu falhei mandaste-me um telegrama com duas
palavras e três pontos: “AND YET…”
Depois da notícia
quase funerária no New Yorker fizeste questão de aparecer em Los
Angeles a dizer que, quando disseste que estavas pronto para morrer,
estavas a ser dramático. Fizeste-nos rir. Prometeste viver até aos 120
anos. Prometeste-nos mais dois álbuns de canções.
Mentiroso!
Sempre foste o mais sublime dos mentirosos. Nem era preciso mentires: eu
julgava que ias viver para sempre, como sempre tinhas vivido. Agora
morreste e obrigas-me a escrever estas palavras lavadas em lágrimas. AND
YET… E, no entanto, tiveste uma vida feliz. Fizeste o que querias. Amaste
e foste amado. Trabalhaste nas canções mais bonitas e elevadas do nosso
tempo. Já há mais de 60 anos que andaste a falar com Deus, a preparar o
teu caminho. Foste um pecador de primeira AND YET… E, no entanto, algo me
diz que vais ser muito bem recebido no reino dos céus, se fôr para aí que
combinaste ir.
Deixaste-nos.
Avisaste muitas vezes que nos ias deixar. Deixar tornou-se a tua
especialidade. Ninguém se despedia tão bem como tu. Ninguém dava à sola
tão depressa como tu, tão bem vestido, com sapatos feitos para percorrer
as grandes distâncias do amor e da vida.
Partiste e,
no entanto, continuas cá. Eu vi o tamanho do teu caderno gigante, cheio de
versos e desenhos. Espero bem que haja centenas de canções que tu julgaste
que ainda não estavam prontas, mas que estão.
Agora que
morreste escusamos essas canções de serem perfeitas, como aquelas que
escreveste e cantaste enquanto eras vivo. Enquanto eras vivo - estas
palavras ainda custam mais a escrever do que a simples palavra “morreste”.
Sabes
porquê? Aposto que ainda sabes mais, aí no lugar onde estás, na Tower of
Song. Porque “morreste” ainda é uma coisa que tu fizeste. Morreste,
sacana. É uma coisa de que podemos acusar-te; é um verbo que podemos
atirar-te à cara. Em contrapartida “enquanto eras vivo” já pertence a um
passado em que já fizeste tudo o que tinhas para fazer, incluíndo morrer.
Uma pessoa
tem de morrer. E até a morrer foste um senhor. Pouco antes de morrer -
sabemos agora - percorreste o mundo para cantar as tuas canções a quem
quisesse ver-te a cantá-las. E melhor do que em qualquer outra altura da
tua vida. Tu foste daqueles que melhoram à medida que se aproximam da
morte. Aproximaste-te devagarinho, sem ser a medo, como se a morte fosse a
última mulher. Cantaste-lhe a canção do bandido - nunca ninguém será capaz
de cantá-la melhor do que tu - a ver se ela ia na tua cantiga. Deitaste-te
com ela na esperança que ela te esquecesse. And yet e, no entanto (aqui
sinto-te a sorrir) ela deu cabo de ti à mesma.
Toda a vida
dançaste com Deus e com a morte – às vezes eram mulheres, outras vezes
professores – e algumas dessas vezes acabaram como canções, divinas de
amor e de vida, escritas por quem conheceu a alegria e a tristeza de amar
e viver e viver e amar.
Morreste,
Leonard Cohen e, no entanto, continuas vivíssimo para quem já morreu. Hoje
de manhã, quando ouvi You Want It Darker, como faço todas as manhãs
desde que saiu o álbum, pensei que ia chorar, por ser a primeira vez que o
ouvi sabendo que estavas morto. Mas não chorei. As canções fizeram o que
sempre fizeram: encheram-me de força, abriram-me ao medo e à beleza de
estar vivo.
Adeus,
Leonard Cohen, dizemos nós como se não soubéssemos que já lá estás.
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