sexta-feira, novembro 11, 2016

Leonard Cohen, Adeus, dizemos nós como se não soubéssemos que já lá estás.



Meu grande sacana
11/11/2016 - 09:54
Nosso caro Leonard Cohen: não só sabemos que nos podes ouvir, como desconfiamos que estejas deitado numa nuvem, rodeada por anjos do sexo feminino, a comer uvas enquanto te comoves a ouvir atentamente os nossos gemidos de saudade
Meu grande sacana,
Passámos um fim-de-semana juntos em que me fizeste esquecer que eras o meu herói. Quando acabou fiquei com dois heróis: com o Leonard Cohen das canções e com o Leonard Cohen em carne e osso.
Embebedámo-nos com Bloody Marys e, a certa altura, tu reparaste que eu tinha a mania de desdizer o que tinha acabado de dizer. Eu disse-te que era um tique português. Primeiro afirma-se um disparate ou uma verdade. Depois continua-se “E, no entanto…”
“And yet!”, gritaste, “the two greatest words in any language!” Depois desataste a dar exemplos. A uma mulher que te amava e queria casar contigo: “I love you… AND YET… I cannot marry you this year”. Ao barman: “Bem sei que já bebi a minha conta… AND YET… apetece-me outro Bloody Mary”.
Prometemos escrever um ao outro. Quando eu falhei mandaste-me um telegrama com duas palavras e três pontos: “AND YET…”
Depois da notícia quase funerária no New Yorker fizeste questão de aparecer em Los Angeles a dizer que, quando disseste que estavas pronto para morrer, estavas a ser dramático. Fizeste-nos rir. Prometeste viver até aos 120 anos. Prometeste-nos mais dois álbuns de canções.
Mentiroso! Sempre foste o mais sublime dos mentirosos. Nem era preciso mentires: eu julgava que ias viver para sempre, como sempre tinhas vivido. Agora morreste e obrigas-me a escrever estas palavras lavadas em lágrimas. AND YET… E, no entanto, tiveste uma vida feliz. Fizeste o que querias. Amaste e foste amado. Trabalhaste nas canções mais bonitas e elevadas do nosso tempo. Já há mais de 60 anos que andaste a falar com Deus, a preparar o teu caminho. Foste um pecador de primeira AND YET… E, no entanto, algo me diz que vais ser muito bem recebido no reino dos céus, se fôr para aí que combinaste ir.
Deixaste-nos. Avisaste muitas vezes que nos ias deixar. Deixar tornou-se a tua especialidade. Ninguém se despedia tão bem como tu. Ninguém dava à sola tão depressa como tu, tão bem vestido, com sapatos feitos para percorrer as grandes distâncias do amor e da vida.
Partiste e, no entanto, continuas cá. Eu vi o tamanho do teu caderno gigante, cheio de versos e desenhos. Espero bem que haja centenas de canções que tu julgaste que ainda não estavam prontas, mas que estão.
Agora que morreste escusamos essas canções de serem perfeitas, como aquelas que escreveste e cantaste enquanto eras vivo. Enquanto eras vivo - estas palavras ainda custam mais a escrever do que a simples palavra “morreste”.
Sabes porquê? Aposto que ainda sabes mais, aí no lugar onde estás, na Tower of Song. Porque “morreste” ainda é uma coisa que tu fizeste. Morreste, sacana. É uma coisa de que podemos acusar-te; é um verbo que podemos atirar-te à cara. Em contrapartida “enquanto eras vivo” já pertence a um passado em que já fizeste tudo o que tinhas para fazer, incluíndo morrer.
Uma pessoa tem de morrer. E até a morrer foste um senhor. Pouco antes de morrer - sabemos agora - percorreste o mundo para cantar as tuas canções a quem quisesse ver-te a cantá-las. E melhor do que em qualquer outra altura da tua vida. Tu foste daqueles que melhoram à medida que se aproximam da morte. Aproximaste-te devagarinho, sem ser a medo, como se a morte fosse a última mulher. Cantaste-lhe a canção do bandido - nunca ninguém será capaz de cantá-la melhor do que tu - a ver se ela ia na tua cantiga. Deitaste-te com ela na esperança que ela te esquecesse. And yet e, no entanto (aqui sinto-te a sorrir) ela deu cabo de ti à mesma.
Toda a vida dançaste com Deus e com a morte – às vezes eram mulheres, outras vezes professores – e algumas dessas vezes acabaram como canções, divinas de amor e de vida, escritas por quem conheceu a alegria e a tristeza de amar e viver e viver e amar.
Morreste, Leonard Cohen e, no entanto, continuas vivíssimo para quem já morreu. Hoje de manhã, quando ouvi You Want It Darker, como faço todas as manhãs desde que saiu o álbum, pensei que ia chorar, por ser a primeira vez que o ouvi sabendo que estavas morto. Mas não chorei. As canções fizeram o que sempre fizeram: encheram-me de força, abriram-me ao medo e à beleza de estar vivo.
Adeus, Leonard Cohen, dizemos nós como se não soubéssemos que já lá estás.

terça-feira, novembro 08, 2016

Uns sacrificados, uns Cristos, que pecado feio, a ingratidão.



Portugal visto por Lobo Antunes

Agora sol na rua a fim de me melhorar a disposição, me reconciliar com a vida.
Passa uma senhora de saco de compras: não estamos assim tão mal, ainda compramos coisas, que injusto tanta queixa, tanto lamento.
Isto é internacional, meu caro, internacional e nós, estúpidos, culpamos logo os governos.
Quem nos dá este solzinho, quem é? E de graça. Eles a trabalharem para nós, a trabalharem, a trabalharem e a gente, mal agradecidos, protestamos.
Deixam de ser ministros e a sua vida um horror, suportado em estóico silêncio. Veja-se, por exemplo, o senhor Mexia, o senhor Dias Loureiro, o senhor Jorge Coelho, coitados. Não há um único que não esteja na franja da miséria. Um único. Mais
aqueles rapazes generosos, que, não sendo ministros, deram o litro pelo País e só por orgulho não estendem a mão à caridade.
O senhor Rui Pedro Soares, os senhores Penedos pai e filho, que isto da bondade as vezes é hereditário, dúzias deles.
Tenham o sentido da realidade, portugueses, sejam gratos, sejam honestos, reconheçam o que eles sofreram, o que sofrem.
Uns sacrificados, uns Cristos, que pecado feio, a ingratidão.
O senhor Vale e Azevedo, outro santo, bem o exprimiu em Londres. O senhor Carlos Cruz, outro santo, bem o explicou em livros. E nós, por pura maldade, teimamos em não entender. Claro que há povos ainda piores do que o nosso: os islandeses, por exemplo, que se atrevem a meter os beneméritos em tribunal.
Pelo menos nesse ponto, vá lá, sobra-nos um resto de humanidade, de respeito.
Um pozinho de consideração por almas eleitas, que Deus acolherá decerto, com especial ternura, na amplidão imensa do Seu seio. Já o estou a ver:
- Senta-te aqui ao meu lado ó Loureiro
- Senta-te aqui ao meu lado ó Duarte Lima
- Senta-te aqui ao meu lado ó Azevedo que é o mínimo que se pode fazer por esses Padres Américos, pela nossa interminável lista de bem-aventurados, banqueiros, coitadinhos, gestores que o céu lhes dê saúde e boa sorte e demais penitentes de coração puro, espíritos de eleição, seguidores escrupulosos do Evangelho. E com a bandeirinha nacional na lapela, os patriotas, e com a arraia miúda no coração. E melhoram-nos obrigando-nos a sacrifícios purificadores, aproximando-nos dos banquetes de bem-aventuranças da Eternidade.
As empresas fecham, os desempregados aumentam, os impostos crescem,
penhoram casas, automóveis, o ar que respiramos e a maltosa incapaz de enxergar a capacidade purificadora destas medidas. Reformas ridículas, ordenados mínimos irrisórios, subsídios de cacaracá? Talvez. Mas passaremos sem
dificuldade o buraco da agulha enquanto os Loureiros todos abdicam, por amor ao próximo, de uma Eternidade feliz. A transcendência deste acto dá-me vontade de ajoelhar à sua frente. Dá-me vontade? Ajoelho à sua frente  indigno de lhes desapertar as correias dos sapatos.
Vale e Azevedo para os Jerónimos, já! Loureiro para o Panteão já!
Jorge Coelho para o Mosteiro de Alcobaça, já! Sócrates para a Torre de Belém, já! A Torre de Belém não, que é tão feia. Para a Batalha.
Fora com o Soldado Desconhecido, o Gama, o Herculano, as criaturas de pacotilha com que os livros de História nos enganaram.
Que o Dia de Camões passe a chamar-se Dia de Armando Vara.
Haja sentido das proporções, haja espírito de medida, haja respeito.
Estátuas equestres para todos, veneração nacional.
Esta mania tacanha de perseguir o senhor Oliveira e Costa: libertem-no. Esta pouca vergonha contra os poucos que estão presos, os quase nenhuns que estão presos como provou o senhor Vale e Azevedo, como provou o senhor Carlos Cruz, hedionda perseguição pessoal com fins inconfessáveis.
Admitam-no. E voltem a pôr o senhor Dias Loureiro no Conselho de Estado, de onde o obrigaram, por maldade e inveja, a sair.
Quero o senhor Mexia no Terreiro do Paço, no lugar D. José que, aliás, era um pateta. Quero outro mártir qualquer, tanto faz, no lugar do Marquês de Pombal, esse tirano. Acabem com a pouca vergonha dos Sindicatos. Acabem com as manifestações, as greves, os protestos, por favor deixem de pecar.

Como pedia o doutor João das Regras, olhai, olhai bem, mas vêde. E tereis mais fominha e, em consequência, mais Paraíso. Agradeçam este solzinho.
Agradeçam a Linha Branca. Agradeçam a sopa e a peçazita de fruta do jantar.
Abaixo o Bem-Estar.
Vocês falam em crise mas as actrizes das telenovelas continuam a aumentar o peito: onde é que está a crise, então? Não gostam de olhar aquelas generosas abundâncias que uns violadores de sepulturas, com a alcunha de cirurgiões plásticos, vos oferecem ao olhinho guloso? Não comem carne mas podem comer lábios da grossura de bifes do lombo e transformar as caras das mulheres em tenebrosas máscaras de Carnaval.
Para isso já há dinheiro, não é? E vocês a queixarem-se sem vergonha, e vocês cartazes,
cortejos, berros. Proíbam-se os lamentos injustos.
Não se vendem livros? Mentira. O senhor Rodrigo dos Santos vende e, enquanto vender o nível da nossa cultura ultrapassa, sem dificuldade, a Academia Francesa. Que queremos? Temos peitos, lábios, literatura e os ministros e os ex-ministros a tomarem conta disto.
Sinceramente, sejamos justos, a que mais se pode aspirar?
O resto são coisas insignificantes: desemprego, preços a dispararem, não haver com que pagar ao médico e à farmácia, ninharias. Como é que ainda sobram criaturas com a desfaçatez de protestarem? Da mesma forma que os processos importantes em tribunal a indignação há-de, fatalmente, de prescrever. E, magrinhos, magrinhos mas com peitos de litro e beijando-nos uns aos outros com os bifes das bocas seremos, como é nossa obrigação, felizes.
Recebi via email de: V. Monteiro

segunda-feira, novembro 07, 2016

As células de cancro são uma espécie de foras-da-lei...

http://www.publico.pt/n1750030https://www.publico.pt/ciencia/noticia/imaginar-um-mundo-sem-cancro-sera-ingenuo-mas-existe-um-cenario-de-cancro-sem-doenca-1750030


As células de cancro são uma espécie de foras-da-lei que evitam ou subvertem as “regras” de bom comportamento que o nosso organismo tem para que funcione normalmente. Para se multiplicarem e se juntarem numa perigosa massa a que chamamos tumores, desenvolvem. Em 2000, Robert Weinberg e Douglas Hanahan publicaram um artigo que denunciava seis das estratégias das células mal comportadas. O trabalho Hallmarks of Cancer (Marcas do Cancro) desvendava o modus operandi das células que constroem tumores malignos.
Em pouco tempo, o trabalho tornou-se um sucesso, batendo recordes de citações e partilhas. O artigo das seis características comuns do cancro ainda é o mais citado da revista científica Cell. Em 2011, os mesmos autores acrescentaram mais duas características comuns do cancro. Em entrevista ao PÚBLICO, quando participou num seminário na Fundação Champalimaud, em Lisboa, Douglas Hanahan, director do Instituto Suíço para a Investigação Experimental de Cancro, em Lausanne, diz que, para já, a lista não vai aumentar. Sobre a guerra ao cancro, avisa que o ponto de partida foi simplista mas acredita que agora temos armas para ganhar batalhas importantes.
A ideia de escrever um artigo com características comuns do cancro surgiu durante um passeio na cratera de um vulcão em Fevereiro de 1998. Lembra-se como foi?
Foi no Havai. Estava numa conferência de cancro de especialistas dos EUA e Japão. A ideia surgiu durante uma viagem de um dia que eu e Weinberg fizemos para visitar um vulcão adormecido chamado Haleakala. Durante o passeio começámos a falar sobre a complexidade do cancro, que abrange questões genéticas, fenótipos, histologia, terapias e outras coisas. Isto parecia assustador e deprimente. E a questão era se existia uma linha comum que conseguisse, de uma forma racional, explicar toda esta complexidade.
Durante o dia, começou a surgir a ideia de que debaixo desta complexidade existiam diferentes soluções para o mesmo desafio. O cancro surge quando uma célula bem comportada se torna uma fora da lei. Para isso, ela tem de fugir a vários sistemas de controlo e equilíbrio que o organismo humano desenvolveu ao longo da sua evolução para manter as células como membros ordeiros e bem-comportados da sociedade de células em todos os nossos órgãos e tecidos. Concluímos que para termos um cancro sintomático era preciso que estas células fora-da-lei adquirissem certas capacidades. E quais seriam? Conseguimos uma lista de seis que pensámos que seriam razoavelmente comuns. A ideia pareceu interessante e decidimos continuar a discutir o assunto. Nos dois anos seguintes, desenvolvemos e apurámos a ideia.
Nas suas conferências, compara alguns destes traços às características de um carro, o acelerador, os travões, um motor híbrido…
Exacto. Basicamente, o cancro é uma doença de proliferação inapropriada e contínua de células que se juntam em massas de células que causam problemas. Normalmente, chamamos “tumores” a essas massas. Para que estes tumores cresçam, são milhões e milhões de células que têm de proliferar. Faço uma simples analogia dizendo que as células têm aceleradores e têm travões. São mecanismos que instruem as células a crescer e dividir-se. E há outros mecanismos que param esta proliferação. As duas primeiras características que elencámos são essas: estimular a divisão celular e escapar aos travões dos supressores de crescimento.
A terceira característica comum do cancro que identificámos é a resistência à morte celular, ao suicídio programado que existe em células normais e serve para reagir a problemas.
Regressando à analogia do carro, as células do cancro não param o motor mesmo quando há uma ordem para desligar?
Pode ser. Além dos travões que param a proliferação das células, há uma série de formas de suicídio assistido ou morte programada em que as células são instruídas (intrinsecamente ou pelas suas vizinhas) a optar por uma ou outra forma de suicídio celular. Isto quando se estão a comportar anormalmente. E assim vemo-nos livres destas células. O que sabemos é que as células do cancro aprendem a limitar, evitar ou tornam-se resistentes aos sinais para se suicidarem.
E a quarta?
É sobre a capacidade que estas células têm de evitar um outro mecanismo que o organismo usa para limitar a divisão celular e que está incorporado na estrutura dos cromossomas e que mantém o registo do número de vezes que aquela célula se dividiu. Faz isso com umas estruturas chamadas “telómeros” que, cada vez que a célula se divide, ficam um pouco mais curtos. Depois de as células passarem por um certo número de divisões, faz disparar um gatilho que avisa que a célula de que foi longe de mais e induz uma paragem, ou aparecem uns travões ou as instruções para o suicídio. A maioria das células é mortal. As células estaminais, por exemplo, são imortais porque evitam este mecanismo de contagem. E as células do cancro accionam a mesma estratégia para também se tornarem imortais.
A quinta característica tem a ver com a forma como estas células se alimentam, com o combustível…
É a indução da angiogénese, que é o processo de formação de novos vasos sanguíneos. Para crescer e dividir-se, uma célula precisa de nutrientes, especialmente oxigénio e glucose. A maioria destes nutrientes vem dos vasos sanguíneos. E o que se descobriu há 30 anos foi que as células tumorais accionam a angiogénese. O tumor tem de ser alimentado e a forma mais eficiente de o fazer é fazendo crescer novos vasos sanguíneos. Normalmente, é um processo que ocorre no desenvolvimento embrionário, na fase reprodutiva da mulher ou quando precisamos de curar uma ferida, mas é transitório. É accionado e depois é desligado. Os tumores aprendem a ligar este mecanismo e a mantê-lo ligado.
A sexta característica também é um outro mecanismo que estas células conseguem manter ligado…
Está relacionada com a capacidade de invadir localmente e de viajar para locais distantes no corpo. Ainda não sabemos explicar claramente porque fazem isto, mas pensamos que servirá para alimentar as esfomeadas células de cancro. O que percebemos agora é que os cancros invasivos e com metástases estão tipicamente associados a vasos sanguíneos normais em tecidos próximos e em locais distantes. Invadir e metastizar será uma outra forma de alimentação.
Os cancros não inventam nada, eles simplesmente adaptam processos naturais que já existem, no desenvolvimento ou no funcionamento normal dos tecidos, a seu favor. Este mecanismo de invasão e migração, por exemplo, acontece na embriogénese. São capacidades normais, que são transitórias e que depois são desligadas. As células de cancro conseguem voltar a activar estes mecanismos.
Passados mais de dez anos, actualizaram a lista com mais duas características. Porquê?
Quando tivemos esta ideia no vulcão, não tínhamos qualquer expectativa de que isto iria ter o efeito que teve e tão duradouro. Pensámos só que era uma ideia interessante que valia a pena divulgar. O meu colega e co-autor costumava dizer que isto seria como atirar uma pequena pedra para um lago que dificilmente iria provocar ondas.
Estavam errados…
Sim, foi extramente ressonante e popular, muito além das nossas expectativas. Em 2005, era o artigo mais citado da conceituada revista Cell. E eles sugeriram que publicássemos uma actualização. Ainda demorámos algum tempo. O original foi, claramente, muito bem-sucedido. E nós sabemos que as sequelas geralmente decepcionam, certo? Isso pesou. Demorámos mais de uma década para fazer a sequela. Mas percebemos que surgiram mais duas destas capacidades que, provavelmente, se aplicavam a várias formas de cancro. Houve uma explosão de estudos nesta altura e surgiu a ideia da proliferação e da forma como as células conseguem combustível. Percebemos que, além do sinal que diz à célula para acelerar, as células do cancro tornam-se versáteis na sua capacidade para usar combustível. Essa é a sétima característica comum: a capacidade de reprogramar o metabolismo energético e celular, e que comparamos a um motor.
Por fim, a oitava característica comum está ligada ao sistema imunitário…
Nas últimas décadas percebemos que, em diferentes etapas do desenvolvimento e da progressão do tumor, o sistema imunitário apercebe-se da sua presença e, em muitos casos, tenta reagir. No entanto, o que vemos nos cancros sintomáticos é que, mais uma vez, eles aprendem a escapar a esta destruição imunitária. Aprendem a evitar esta resposta, activando os mecanismos que desligam o sistema imunitário.
Actualmente, estamos no meio de uma revolução que explora esta noção de o sistema imunitário estar ali desligado e que tenta contrariar estes mecanismos de bloqueio que os tumores usam, havendo respostas impressionantes em alguns doentes.
Está a falar das imunoterapias?
Sim. Actualmente, estas terapias estão a conseguir quase curas de alguns doentes. Nalguns casos, são curas de longo prazo. O melanoma metastático, por exemplo, era uma doença incurável e agora há doentes que estão a ser tratados com estas imunoterapias e permitem que o sistema imunitário reaja e que estão a conseguir erradicar estes tumores.
Há já fármacos de imunoterapia aprovados nos EUA como tratamentos de primeira linha para o cancro. Mas ainda há muitas dúvidas sobre os efeitos secundários, a toxicidade. Será que estas células fora-da-lei vão conseguir adaptar-se e escapar a esta nova arma?
Se calhar vão, nalguns casos. E é verdade que estas terapias não estão a funcionar para todos os doentes com cancro. Ainda não sabemos porquê. Há muitos mecanismos de supervisão no nosso organismo que são usados para regular o sistema imunitário e talvez estas terapias consigam ultrapassar um dos mecanismos que os cancros usam para “imobilizar” o sistema imunitário, mas não todos. Por isso, pensamos que alguns doentes não respondem tão bem como outros porque os seus cancros usam outros mecanismos para calar o sistema imunitário que não são atingidos por estes fármacos. Estamos a viver um momento muito entusiasmante, mas não é a cura para o cancro, embora em alguns doentes esteja a resultar muito, muito bem.
É preciso um cocktail destas drogas?
Provavelmente. E não só com estas imunoterapias, mas com terapias que tenham como alvo as outras das características comuns do cancro. Na maioria dos casos, estas terapias não são curativas. Os tumores respondem durante algum tempo, encolhem e quase desaparecem e depois voltam. Isto é a evolução darwinista. Há uma pressão incrível, a maioria dos seus irmãos morre, mas há um pequeno grupo de células de cancro que encontra uma solução para o problema. As células do cancro adaptam-se, adquirem mutações e depois ficam resistentes à terapia.
O que vemos com estas terapias é esta noção de adaptabilidade e resistência. Mesmo com terapias que têm como alvo as características comuns do cancro, mais precisas do que as tradicionais, elas resultam durante algum tempo, mas falham porque o tumor encontra uma solução. É muito parecido com o que se passa nas origens do cancro em que as células adquirem estas capacidades distintivas para se tornarem um cancro sintomático. São barreiras levantadas pelo organismo que são ultrapassadas. Claramente, o que presenciamos é uma selecção darwinista: um tumor sintomático é o resultado de umas células que conseguiram ultrapassar as barreiras que o nosso organismo tem. O mesmo deverá acontecer com as terapias.
Se forçarmos o sistema imunitário a reagir, não poderemos ter um efeito também negativo?
Os efeitos secundários são uma questão importante em todas as terapias, por exemplo, a toxicidade para os órgãos normais. E no caso das imunoterapias também são uma preocupação. Uma das coisas que os clínicos têm de fazer é perceber a natureza destes efeitos secundários e limitá-los. Estas imunoterapias que activam o sistema imunitário podem provocar efeitos em tecidos normais. Mesmo que o tumor seja reconhecido pelo sistema imunitário, podem mesmo assim existir efeitos. É como tomar demasiada cafeína, os sinais que activam o sistema imunitário podem também activar células noutras partes do corpo e ser potencialmente prejudiciais. Temos de perceber como fazer funcionar isto o melhor possível.
Nunca estamos a falar de um cancro, mas de muitos tipos diferentes de cancro, em diferentes partes do corpo e em diferentes indivíduos com respostas diferentes. Isto também é um problema?
As características comuns são apenas uma maneira de perceber que há traços comuns. Mas há toda uma complexidade da doença a todos os níveis. As premissas são que há muitas maneiras de contornar e ultrapassar estas barreiras e que também há barreiras diferentes em diferentes órgãos. É como escalar uma montanha. Há muitos obstáculos, precipícios e becos sem saída, mas o queremos do topo da montanha é que há muitos caminhos para chegar ali. E há muitos caminhos para o cancro. A esta complexidade junta-se o facto de as células desempenharem papéis diferentes em diferentes órgãos e até no mesmo órgão e no mesmo tipo de cancro, podem existir múltiplas maneiras para adquirir estas capacidades. Por isso, duas doentes que aparentemente têm o mesmo cancro da mama podem ter adquirido estas características nas células de maneiras diferentes. E assim uma poderá responder a determinada terapia e outra não.
Acredita que vamos encontrar uma resposta eficaz para estas células fora-da-lei, que parecem ser capazes de se adaptar a tudo?
Estamos a caminhar para um dia em que poderemos ter tratamentos duradouros, e espero que com reduzida toxicidade, para muitas formas de cancro. Imaginar um mundo sem cancro será ingénuo. Mas existe um cenário de cancro sem doença. Não temos necessariamente de o erradicar se o conseguirmos controlar. O melhor exemplo disso é que a maioria dos homens aos 70 e 80 anos têm lesões na próstata, que qualquer patologista identificaria como cancro da próstata. Mas são assintomáticos, não causam qualquer problema. Isso coloca um objectivo mais atingível para outros cancros. Se encontrarmos uma maneira de os controlar, mesmo que não sejamos capazes de os erradicar completamente, e fazer com que as pessoas com cancro consigam ter uma vida normal…. Estamos num período em que estamos a fazer avanços impressionantes no tratamento de cancro, que penso que há razões para estarmos optimistas.

Atacar por terra, ar e mar

Geralmente, começa as suas palestras lembrando o desafio lançado há 40 anos de “ganhar a guerra contra o cancro”. Em que situação estamos agora?
Progredimos muito. Tinha uma noção muito simplista desta guerra. Actualmente, com a percepção de que temos da complexidade do cancro e também destas capacidades distintivas que parecem ser comuns a várias formas de cancro e com os fármacos que temos, acho que estamos a entrar numa nova fase da guerra, em que temos conhecimento suficiente e armas e em que acredito que vamos fazer avanços impressionantes. Foi muito simplista pensar que íamos ganhar a guerra e matar o cancro. Acho que agora já percebemos que o que podemos fazer é ganhar algumas batalhas específicas e é o que estamos a ver. Estamos a ganhar mais batalhas e, com esta visão mais sofisticada de como devemos lutar, temos a possibilidade de continuar a fazer progressos importantes para melhor tratar o cancro.
A resposta decisiva pode estar nas imunoterapias?
Penso que as imunoterapias vão tornar-se uma das mais poderosas armas que vamos usar para tratar o cancro. E que será capaz de aumentar o número e tipos de tumores que conseguimos tratar, mas não acredito que vá resolver todos os cancros. O futuro que imagino assenta numa analogia com um cenário de guerra. A ideia que tenho vindo a apresentar é que se, tivermos como alvo múltiplas características comuns do cancro ao mesmo tempo, será muito mais difícil para o tumor adaptar-se.
É o seu plano de guerra?
É um plano de guerra civil. Aqui não usaríamos só a imunoterapia, mas combinávamos esta com terapias que bloqueassem a angiogénese [formação de novos vasos sanguíneos] ou as metástases… Há muitas possíveis combinações. Mas acho que o futuro da terapia do cancro será uma combinação de fármacos. Não só que estimulem e activem o sistema imunitário, mas acho que também vamos ver benefícios impressionantes se apontarmos o alvo a estas outras características comuns do cancro. Vemos que eles se podem adaptar se atacarmos só uma delas. Se atacarmos o cancro por terra, pelo ar e pelo mar, é muito mais difícil que resista.
Com um ataque tão amplo, não poderemos destruir todo o território e não só o inimigo?
Tem toda a razão. O desafio desta estratégia será limitar a toxicidade. Será sermos capazes de manter níveis mínimos de toxicidade.
Mas também não serão todas as armas para todos os doentes. Cada doente precisará de uma combinação diferente das armas a usar?
A medicina personalizada é outra fronteira entusiasmante que estamos a viver. Temos agora tecnologias muito avançadas que nos permitem interrogar os tumores e perguntar-lhes qual é o mecanismo que usam para ligar os aceleradores, qual é o sistema de travagem ou qual o mecanismo que bloqueia o sistema imunitário naquele doente em particular. E, assim, vamos poder escolher do nosso inventário de armas as que achamos que vão atingir aqueles mecanismos específicos. Isso é outro momento muito entusiasmante na medicina do cancro: ser mais preciso nos alvos que queremos atingir, sem nos basearmos unicamente no facto de estarmos perante um cancro da mama, ou cólon, mas antes num conhecimento mais profundo de como aquele tumor adquiriu aquelas capacidades.
Já conhecemos o essencial do campo de batalha? Há mais características comuns do cancro a acrescentar à lista?
Penso que, para já, a lista está completa. Há outros tipos de manifestações da complexidade destas células, mas não existe nada que seja suficientemente atractivo que justifique adicionar mais uma característica à lista. Nas conferências, ouvimos sempre alguém sugerir mais esta ou aquela… Há sempre algumas características que sabemos que existem, mas que se relacionam com um tipo de cancro em especial e, neste momento, não há nada que nos pareça ser geral. Mas é algo em aberto.