A estrada da
Beira e a beira da estrada
Diário de Notícias | Editorial, 30. MAIO. 2016
Nuno
Saraiva
Foi em 2012. José Policarpo,
então cardeal-patriarca de Lisboa e presidente da
Conferência Episcopal Portuguesa, dizia que as
manifestações contra as políticas de austeridade
impostas pelo programa de ajustamento representavam
"corrosão da harmonia democrática" e defendia que não
deve ser a rua a determinar como se deve governar. Os
anos passaram, quase quatro, e a Igreja parece pensar
de maneira diferente. Ontem, a Igreja juntou-se à rua
e os bispos portugueses apoiaram pública e
explicitamente a manifestação dos colégios
particulares e deram caução à narrativa de que a
decisão de cortar nos contratos de associação,
supletivos por definição, é uma ameaça à liberdade de
escolha. A esta posição do clero não é seguramente
alheio o facto de algumas destas escolas privadas
serem propriedade da Igreja Católica. Ou seja, em
verdade vos digo que há aqui dois pesos e duas
medidas. Isto é, enquanto o desemprego crescia e as
empresas faliam, a Igreja, em vez de se juntar ao
povo, rezava pelos desgraçados e fazia caridade. Mas
quando as opções políticas atingem os seus interesses
particulares, aí a oração não basta. No mar amarelo
que desaguou junto ao Parlamento ouviram-se coisas
como "pago impostos, tenho direito a escolher a escola
e o sistema de ensino". Nada mais falso. Os impostos
que todos pagamos servem, entre outras coisas, para
financiar pilares fundamentais do Estado e da
democracia, consagrados aliás na Constituição, como
são um ensino público e um Serviço Nacional de Saúde
que tratem todos por igual e que não deixem ninguém
pelo caminho. Ou seja, ao contrário do que se apregoa,
a liberdade de escolha é inatacável e não está
ameaçada. Quem quiser ter os filhos numa escola
pública e gratuita, faça o favor. Quem preferir o
ensino particular, é livre de o fazer desde que pague.
O que não tem qualquer sentido é pretender que seja o
Estado a financiar a iniciativa privada, sobretudo
quando a oferta pública existe e tem qualidade.
Confundir deliberadamente isto com liberdade de
escolha é misturar a estrada da Beira com a beira da
estrada. E, já agora, a preocupação de todos, da
esquerda à direita, deveria ser a defesa de um ensino
público de qualidade, ponto. Mas como ontem também
ouvimos na Rua de São Bento, isso é coisa dos
malandros CGTP. Em matéria de sectarismo estamos,
pois, conversados.