O interior precisa de uma drástica mudança de imagem
“O problema começa logo nas nossas cabeças”, diz o geógrafo João Ferrão.
Primeiro de uma série de trabalhos sobre desenvolvimento do interior, numa
altura em que o tema está em discussão pública.
26 de Dezembro de 2016, 7:32
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Olival em Alfândega da Fé Adriano Miranda/Público
O interior continua a esvaziar-se, como um saco de areia roto. Estudiosos
como Eduardo Castro, coordenador do Grupo de Estudos em Território e Inovação
da Universidade de Aveiro, já não se perguntam se o crescimento económico
possibilita o aumento da população, mas se o aumento da população ainda
possibilita o crescimento económico. Será possível atrair gente sem mudar a imagem
do interior?
Está em debate público o Programa Nacional para a Coesão Territorial,
organizado em torno de 164 medidas que envolvem os vários ministérios. A
coordenadora da Unidade de Missão de Valorização do Interior, Helena Freitas,
descreve-o como “um choque”. Até Março, prepara uma “Agenda para o Interior”,
que será “uma estratégia de longo prazo”. E uma drástica mudança de imagem faz
parte do plano. Vem aí uma série de campanhas para desconstruir “a imagem de
atraso e subdesenvolvimento”. “O Turismo vai apostar muito no interior”,
adianta.
Não é assunto de somenos. “O problema do chamado 'interior' começa logo nas
nossas cabeças”, diz João Ferrão, coordenador do grupo de investigação
Ambiente, Território e Sociedade do Instituto de Ciências Sociais da
Universidade de Lisboa. “Se grande parte do interior deixar de ser pensado – e
visto – como interior remove-se logo uma série de obstáculos.”
Que imagem tem o interior? “Árvores a arder, casas ameaçadas, pessoas aos
gritos, um ou outro crime”, arrisca Nuno Francisco, director do Jornal do
Fundão. E serviços a fechar, mulheres de pele encorrilhada a trabalhar no
campo, homens sentados à espera do fim. Não se esgota nisto, até pela crescente
valorização da natureza, do património, da cultura, mas “é uma imagem
redutora”, de perda, envelhecimento, despovoamento, isolamento. E isso não
convida.
O interior, aponta Ferrão, “tem alguma responsabilidade”. E pode ser boa
ideia ter isso em conta em ano de eleições autárquicas. Há anos que o geógrafo
ouve autarcas a dizer: “Se perdemos essa ideia de interior, perdemos o capital
de queixa fundamental para reivindicar soluções.” E isto parece-lhe o reflexo
de “uma mentalidade que evita que se construa futuro”.
“É fundamental articular a perspectiva mais reivindicativa com uma
perspectiva mais propositiva, observar as oportunidades, as fraquezas e, a
partir daí, gerar um conjunto de estratégias que possam fazer diferença”,
enfatiza Alcides Monteiro, da Universidade da Beira Interior (UBI).
Esvaziamento contínuo
“Temos uma dificuldade grande em perceber o que está a acontecer”,
considera Luís Leite Ramos, professor da Universidade de Trás-os-Montes e Alto
Douro, que investiga na área de Planeamento e Ordenamento do Território e foi
eleito deputado pelo círculo de Vila Real na lista do PSD. “Temos uma leitura
muito estática. Não percebemos que há um processo de esvaziamento contínuo.” Há
concelhos, como Pampilhosa da Serra, que estão a perder gente há uma centena de
anos. Entre 1957 e 1974, à volta de um milhão de portugueses saiu do território
nacional, quatro quintos dos quais do interior. Na década de 70, o país
assistiu a uma grande vaga de regressos – de outros países europeus e das
ex-colónias –, mas nem nessa altura o saldo total do interior foi positivo.
O êxodo representou o abandono de uma agricultura que atava a população à
pobreza. O movimento de saídas do território persiste. E a natalidade está a
cair desde meados da década de 70. Os piores cenários podem ser vistos no
Pinhal interior sul, na serra da Estrela, na Beira interior sul, na Beira
interior norte. Já não vão lá com incentivos à natalidade. Têm um problema de
estrutura etária, tem avisado Eduardo Castro. A percentagem de mulheres em
idade fértil é demasiado baixa.
“Durante anos, houve a ideia de que a infra-estruturação e a melhoria da
qualidade de vida seriam condições necessárias e suficientes para imprimir uma
dinâmica de desenvolvimento”, lembra Luís Leite Ramos. “Embora as condições de
vida e a qualidade de vida em muitos municípios do interior sejam muito
melhores do que em muitos concelhos das áreas metropolitanas, o facto-chave na
fixação de população é o emprego e isso não existe ou existe pouco. A única
maneira de romper este ciclo é com emprego produtivo associado às competências
locais, que podem ser recursos naturais, mas também podem ser outras
competências ou capacidades instaladas, nomeadamente instituições do ensino
superior”, acredita.
“Se as pessoas não quiserem, o Estado não vai obrigar a ir viver para o interior”,
enfatiza a coordenadora da Unidade de Missão de Valorização do Interior, criada
na dependência da presidência do Conselho de Ministros. “O Estado vai criar
incentivos que podem ser facilitadores. E a primeira condição é garantir que
não há perda de serviços públicos”, diz a também professora da Universidade de
Coimbra, eleita deputada pelo Círculo de Coimbra na lista do PS. Em nome da
racionalização dos custos e da eficácia, nos últimos anos têm fechado escolas,
postos de correios, tribunais, extensões de saúde.
Convergência de factores
Não há um pacote específico de incentivo à atracção e fixação de jovens.
Há, defende, várias medidas que podem ter esse efeito, relacionadas, por
exemplo, com adequação da oferta de ensino e formação, incentivos à criação de
emprego, desenvolvimento de estruturas de base tecnológica, apoio à mobilidade
geográfica de desempregados, criação de bolsas de habitação para arrendamento
jovem. “Tem de haver convergência de factores para que as coisas resultem.”
“Habituámo-nos a olhar para o interior em função de uma actividade
agrícola. Já não temos o predomínio dessa actividade, mas também não temos o de
outra. Estamos num momento de transição”, constata aquela responsável.
“Despontam projectos com inovação.”
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O que é, afinal, o interior? O interior é Cabaça, um conjunto de casas em
ruínas encavalitadas num esporão com vista de estarrecer sobre a serra
algarvia, uma aldeia morta entre sobreiros, medronheiros, estevas, urzes e
rosmaninho. Mas também a multiplicação de olival intensivo no Alvito – milhões
de oliveiras plantadas em compassos apertados, exploradas em regadio. E a
produção de enchidos em Vinhais, da chouriça à alheira, do salpicão ao butelo.
E a BLC3 – Plataforma para o Desenvolvimento da Região Interior Centro, com
sede em Oliveira do Hospital, que venceu o prémio europeu de crescimento
sustentável com um projecto de produção de biocombustíveis.
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João Ferrão ainda se lembra de ouvir Valente de Oliveira, ministro do
Planeamento e da Administração do Território entre 1985 e 1995, discursar sobre
a necessidade de “desencravar o interior”. “Desencravar era criar condições de
acessibilidade.” Agora, que o país é atravessado por três mil quilómetros de
auto-estradas e o digital impera, todas as distâncias se encurtaram.
O geógrafo resume o cenário nestes termos: “Quando se olha para aquilo a
que se chama 'interior', tem de se discutir duas coisas: regressão e dinamismo.
Há dinamismo interessante e dinamismo que levanta as maiores dúvidas. Uma
estratégia para o futuro devia lidar com o abandono: ‘Bom, vamos ter de ser
selectivos. Vamos apostar em quê? Como vamos gerir as áreas abandonadas?’ Mas
também deveria pôr o dedo na outra dimensão: ‘Como é que evitamos ocupações
altamente predadoras, quer do ponto de vista social quer do ponto de vista
ecológico?’ O drama – não vai acontecer – seria que o dito interior, no futuro,
só tivesse abandono e ocupação predadora.”