Mário Soares por José António Saraiva
Joaquim Vieira foi meu director-adjunto no Expresso. Era um óptimo jornalista. Tínhamos feitios muito diferentes – ele era um homem frio, dificilmente se emocionava e não vibrava com os sucessos –, o que contribuía para nos afastar.
Além disso, em volta dele gravitavam pessoas muito críticas relativamente à minha orientação (como o Alexandre Pomar ou a Clara Ferreira Alves), o que não podia deixar de ter consequências.
Um dia disse-lhe que perdera a confiança nele – e comuniquei o facto a Balsemão, presidente do Conselho de Administração, que o convidou a demitir-se. Depois de alguma hesitação, ele acabou por fazê-lo.
Apesar deste episódio, nunca cortámos relações, embora nos distanciássemos ainda mais. Tínhamos amigos comuns, como a Felícia Cabrita, o que nunca interferiu na nossa relação, num sentido ou noutro. Um dia, numa sessão ocorrida alguns anos depois de ele ter saído do Expresso, fez uma observação em público de que não gostei e escrevi-lhe um cartão bastante incisivo. Ele respondeu-me, mas eu nunca abri a carta. Guardei-a numa gaveta – e passado um tempo, ao fazer uma limpeza aos papéis, deitei-a fora.
Não foi a primeira vez que agi assim. Como director de jornais há 30 anos, tenho passado por situações complicadíssimas – e uso às vezes este truque para evitar aborrecimentos maiores: ignoro os assuntos que podem magoar-me inutilmente. Nessas ocasiões, penso o seguinte: o ser humano tem uma reserva de energia limitada, pelo que só deve aplicá-la onde ela pode ser útil. Não vale a pena desbaratarmos energias em polémicas estéreis (ou causas perdidas).
Este afastamento em relação a Vieira não significa que tenha ignorado os seus trabalhos. Comprei alguns volumes da colecção Portugal Século XX do Círculo de Leitores, que ele orientou. E adquiri agora, com expectativa, a sua biografia de Mário Soares.
Devo esclarecer que não li as anteriores biografias de Soares, nem sequer a de Maria João Avillez, apesar de ser uma obra, hoje, de referência.
Mas Avillez (que também trabalhou comigo no Expresso) é uma mulher emocional, que se deixa arrastar pelas personagens de quem gosta, e Vieira é a tal pedra de gelo. Por isso, esta sua biografia prometia ser mais irreverente – e não me desiludiu. É um livro notável, que aliás vou recomendar aos meus alunos da Católica. Trata-se de um excelente repositório não só sobre Soares mas sobre os últimos 60 anos da história política portuguesa.
Ali vemos Mário Soares em corpo inteiro, num retrato que é ao mesmo tempo rico (de pormenores), glorificador (porque ficam claras todas as qualidades de Soares como líder político) e cruel (porque também ficam claros todos os seus defeitos).
Embora não seja novidade, muitos não sabem que Mário Soares é filho de um padre católico, fruto da relação proibida entre este e a dona da pensão onde estava hospedado em Lisboa (vindo da província, já em consequência de um escândalo sentimental).
Só depois de Soares nascer o pai decidiu sair da Igreja, pedindo escusa ao Papa e casando a seguir com a mãe do seu filho.
Mário Soares é um homem de uma coragem física invulgar, que roça a irresponsabilidade (ele chama frequentemente «cobardes» a outros políticos), mas que faz tudo em função dos seus interesses pessoais. Esteve preso no Aljube, em Caxias e depois exilado em S. Tomé – onde vivia na pousada local, tinha um carro para andar pela ilha (um Volkswagen carocha), frequentava a casa do governador e recebia a família em visita de férias!
Soares nunca se preocupou em demasia com a família: foi sempre a mulher quem aguentou o lar e o Colégio Moderno. Algumas cartas que Maria Barroso escreveu ao marido no fim dos anos 60 e princípios de 70, quando ele estava ausente no estrangeiro, são peças notáveis e lancinantes. Nelas confessa a sua insatisfação, inclusive no plano sexual. Estas cartas foram publicadas pelo SOL na colecção Cartas de Amor de Maria Barroso.
Confirma-se, na biografia de Vieira, que Soares não lia os dossiês. Pedia que lhos resumissem numa folha A4. E Alfredo Barroso, que foi seu secretário de Estado e chefe da Casa Civil em Belém, adianta que uma folha A4 já era demais.
Soares não fazia a menor ideia das questões económicas e financeiras. Uma vez, numa visita à Alemanha, pôs Constâncio a tratar com o chanceler Helmut Schmidt de problemas financeiros, enquanto foi visitar um museu. Mas deve dizer-se que, quando o PS ou até o país precisavam de dinheiro, ele pegava no telefone, ligava para os seus camaradas socialistas europeus ou para o ‘amigo Carlucci’, e resolvia o problema. Nunca perdeu uma noite por causa disso. Também nunca sofreu consequências pelo modo ‘despachado’ como resolvia esses problemas. Uma testemunha conta que para a candidatura de Soares a Belém entravam pacotes de notas embrulhadas em papel de mercearia. E uma fonte anónima garante que Soares, já Presidente da República, ajudou a campanha socialista à Câmara de Lisboa, desde que o filho fosse n.º 2 da lista: «Mário Soares aceitava desbloquear os dinheiros para o PS na condição, então, de o filho ser o n.º 2 da lista candidata pelo PS em Lisboa e, em caso de vitória, o substituto de Sampaio nas suas ausências como presidente da Câmara».
Soares é um homem pragmático a 100% e um táctico puro. O político que hoje ataca a austeridade dizia em 1983 que não havia outro caminho senão apertar o cinto, e enfurecia-se por o bispo de Setúbal falar em «fome». Mas, quando se tratou de avançar para a Presidência da República, pediu a Ernâni Lopes, o seu ministro das Finanças, para aliviar a austeridade de modo a ganhar votos (o que este recusou).
E num Congresso do PS irritou-se quando Maria Belo suscitou a questão do aborto, por ser politicamente «inconveniente».
Nos momentos difíceis usava sem pudor os amigos, sacrificando-os quando era preciso. Tudo era feito em função da sua agenda pessoal. Nessa questão do aborto, quando se viu acossado pela direita e atacado pela Igreja, não fez mais nada: planeou uma visita ao Vaticano e conseguiu ser recebido pelo Papa (João Paulo II).
Quem arranjou a audiência foi o embaixador Hélder Mendonça e Cunha, e Soares descreve assim a chegada ao Vaticano: «Cheguei e lá tinha o embaixador, muito maricão mas muito simpático, impecável, sempre muito bem vestido, a quem eu tinha feito alguns favores grandes, um deles mandá-lo para o Vaticano».
Quando se zangava com os que antes o serviam, era implacável. Rui Mateus, que o acompanhou em inúmeras viagens ao estrangeiro, que foi seu tradutor e lhe angariou fundos para as campanhas, é definido por Soares no livro como «quase analfabeto» que «mal sabia ler e escrever».
Mário Soares era assim: bonacheirão, desenrascado, pragmático, amante das mulheres (recusou uma sugestão do PCP para passar à clandestinidade porque dizia «gostar de mulheres e da boa vida»), um tanto leviano, afeiçoando a realidade aos seus interesses. Noutro contexto geográfico, poderia ser um Chávez mais soft, um caudilho do tipo sul americano, afectuoso, teatral, bom tribuno, despreocupado com a economia e as finanças, resolvendo os assuntos de Estado com uma palmada nas costas.
Um dia, num jantar do Prémio Pessoa, em Seteais, ele disse a Balsemão, apontando para mim: «Aqui o Saraiva não gosta dos políticos bons vivants como eu ou você. Gosta mais dos caras-de-pau, como o Eanes e o Cavaco».
A guerra sem tréguas de Soares contra Eanes também fica bem exposta no livro – e seria depois transposta para Cavaco Silva, que Soares considerava um provinciano, «sem mundo, sem currículo político» (embora depois confessasse que o «menosprezou»).
Enfim, um livro para ler com muito prazer – cheio de pessoas ainda vivas e de outras que conhecemos de perto ou de quem ouvimos falar muito –, recheado de histórias pitorescas, assente numa investigação exaustiva e credível. E, depois de lido, é um livro para guardar – porque funciona como obra de consulta. Está lá boa parte da história da segunda metade do nosso século XX.
jas@sol.pt
03.07.2013
Joaquim Vieira foi meu director-adjunto no Expresso. Era um óptimo jornalista. Tínhamos feitios muito diferentes – ele era um homem frio, dificilmente se emocionava e não vibrava com os sucessos –, o que contribuía para nos afastar.
Além disso, em volta dele gravitavam pessoas muito críticas relativamente à minha orientação (como o Alexandre Pomar ou a Clara Ferreira Alves), o que não podia deixar de ter consequências.
Um dia disse-lhe que perdera a confiança nele – e comuniquei o facto a Balsemão, presidente do Conselho de Administração, que o convidou a demitir-se. Depois de alguma hesitação, ele acabou por fazê-lo.
Apesar deste episódio, nunca cortámos relações, embora nos distanciássemos ainda mais. Tínhamos amigos comuns, como a Felícia Cabrita, o que nunca interferiu na nossa relação, num sentido ou noutro. Um dia, numa sessão ocorrida alguns anos depois de ele ter saído do Expresso, fez uma observação em público de que não gostei e escrevi-lhe um cartão bastante incisivo. Ele respondeu-me, mas eu nunca abri a carta. Guardei-a numa gaveta – e passado um tempo, ao fazer uma limpeza aos papéis, deitei-a fora.
Não foi a primeira vez que agi assim. Como director de jornais há 30 anos, tenho passado por situações complicadíssimas – e uso às vezes este truque para evitar aborrecimentos maiores: ignoro os assuntos que podem magoar-me inutilmente. Nessas ocasiões, penso o seguinte: o ser humano tem uma reserva de energia limitada, pelo que só deve aplicá-la onde ela pode ser útil. Não vale a pena desbaratarmos energias em polémicas estéreis (ou causas perdidas).
Este afastamento em relação a Vieira não significa que tenha ignorado os seus trabalhos. Comprei alguns volumes da colecção Portugal Século XX do Círculo de Leitores, que ele orientou. E adquiri agora, com expectativa, a sua biografia de Mário Soares.
Devo esclarecer que não li as anteriores biografias de Soares, nem sequer a de Maria João Avillez, apesar de ser uma obra, hoje, de referência.
Mas Avillez (que também trabalhou comigo no Expresso) é uma mulher emocional, que se deixa arrastar pelas personagens de quem gosta, e Vieira é a tal pedra de gelo. Por isso, esta sua biografia prometia ser mais irreverente – e não me desiludiu. É um livro notável, que aliás vou recomendar aos meus alunos da Católica. Trata-se de um excelente repositório não só sobre Soares mas sobre os últimos 60 anos da história política portuguesa.
Ali vemos Mário Soares em corpo inteiro, num retrato que é ao mesmo tempo rico (de pormenores), glorificador (porque ficam claras todas as qualidades de Soares como líder político) e cruel (porque também ficam claros todos os seus defeitos).
Embora não seja novidade, muitos não sabem que Mário Soares é filho de um padre católico, fruto da relação proibida entre este e a dona da pensão onde estava hospedado em Lisboa (vindo da província, já em consequência de um escândalo sentimental).
Só depois de Soares nascer o pai decidiu sair da Igreja, pedindo escusa ao Papa e casando a seguir com a mãe do seu filho.
Mário Soares é um homem de uma coragem física invulgar, que roça a irresponsabilidade (ele chama frequentemente «cobardes» a outros políticos), mas que faz tudo em função dos seus interesses pessoais. Esteve preso no Aljube, em Caxias e depois exilado em S. Tomé – onde vivia na pousada local, tinha um carro para andar pela ilha (um Volkswagen carocha), frequentava a casa do governador e recebia a família em visita de férias!
Soares nunca se preocupou em demasia com a família: foi sempre a mulher quem aguentou o lar e o Colégio Moderno. Algumas cartas que Maria Barroso escreveu ao marido no fim dos anos 60 e princípios de 70, quando ele estava ausente no estrangeiro, são peças notáveis e lancinantes. Nelas confessa a sua insatisfação, inclusive no plano sexual. Estas cartas foram publicadas pelo SOL na colecção Cartas de Amor de Maria Barroso.
Confirma-se, na biografia de Vieira, que Soares não lia os dossiês. Pedia que lhos resumissem numa folha A4. E Alfredo Barroso, que foi seu secretário de Estado e chefe da Casa Civil em Belém, adianta que uma folha A4 já era demais.
Soares não fazia a menor ideia das questões económicas e financeiras. Uma vez, numa visita à Alemanha, pôs Constâncio a tratar com o chanceler Helmut Schmidt de problemas financeiros, enquanto foi visitar um museu. Mas deve dizer-se que, quando o PS ou até o país precisavam de dinheiro, ele pegava no telefone, ligava para os seus camaradas socialistas europeus ou para o ‘amigo Carlucci’, e resolvia o problema. Nunca perdeu uma noite por causa disso. Também nunca sofreu consequências pelo modo ‘despachado’ como resolvia esses problemas. Uma testemunha conta que para a candidatura de Soares a Belém entravam pacotes de notas embrulhadas em papel de mercearia. E uma fonte anónima garante que Soares, já Presidente da República, ajudou a campanha socialista à Câmara de Lisboa, desde que o filho fosse n.º 2 da lista: «Mário Soares aceitava desbloquear os dinheiros para o PS na condição, então, de o filho ser o n.º 2 da lista candidata pelo PS em Lisboa e, em caso de vitória, o substituto de Sampaio nas suas ausências como presidente da Câmara».
Soares é um homem pragmático a 100% e um táctico puro. O político que hoje ataca a austeridade dizia em 1983 que não havia outro caminho senão apertar o cinto, e enfurecia-se por o bispo de Setúbal falar em «fome». Mas, quando se tratou de avançar para a Presidência da República, pediu a Ernâni Lopes, o seu ministro das Finanças, para aliviar a austeridade de modo a ganhar votos (o que este recusou).
E num Congresso do PS irritou-se quando Maria Belo suscitou a questão do aborto, por ser politicamente «inconveniente».
Nos momentos difíceis usava sem pudor os amigos, sacrificando-os quando era preciso. Tudo era feito em função da sua agenda pessoal. Nessa questão do aborto, quando se viu acossado pela direita e atacado pela Igreja, não fez mais nada: planeou uma visita ao Vaticano e conseguiu ser recebido pelo Papa (João Paulo II).
Quem arranjou a audiência foi o embaixador Hélder Mendonça e Cunha, e Soares descreve assim a chegada ao Vaticano: «Cheguei e lá tinha o embaixador, muito maricão mas muito simpático, impecável, sempre muito bem vestido, a quem eu tinha feito alguns favores grandes, um deles mandá-lo para o Vaticano».
Quando se zangava com os que antes o serviam, era implacável. Rui Mateus, que o acompanhou em inúmeras viagens ao estrangeiro, que foi seu tradutor e lhe angariou fundos para as campanhas, é definido por Soares no livro como «quase analfabeto» que «mal sabia ler e escrever».
Mário Soares era assim: bonacheirão, desenrascado, pragmático, amante das mulheres (recusou uma sugestão do PCP para passar à clandestinidade porque dizia «gostar de mulheres e da boa vida»), um tanto leviano, afeiçoando a realidade aos seus interesses. Noutro contexto geográfico, poderia ser um Chávez mais soft, um caudilho do tipo sul americano, afectuoso, teatral, bom tribuno, despreocupado com a economia e as finanças, resolvendo os assuntos de Estado com uma palmada nas costas.
Um dia, num jantar do Prémio Pessoa, em Seteais, ele disse a Balsemão, apontando para mim: «Aqui o Saraiva não gosta dos políticos bons vivants como eu ou você. Gosta mais dos caras-de-pau, como o Eanes e o Cavaco».
A guerra sem tréguas de Soares contra Eanes também fica bem exposta no livro – e seria depois transposta para Cavaco Silva, que Soares considerava um provinciano, «sem mundo, sem currículo político» (embora depois confessasse que o «menosprezou»).
Enfim, um livro para ler com muito prazer – cheio de pessoas ainda vivas e de outras que conhecemos de perto ou de quem ouvimos falar muito –, recheado de histórias pitorescas, assente numa investigação exaustiva e credível. E, depois de lido, é um livro para guardar – porque funciona como obra de consulta. Está lá boa parte da história da segunda metade do nosso século XX.
jas@sol.pt
03.07.2013
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